terça-feira, 15 de setembro de 2009

Adored

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Tu me seguias como se o caminho não fosse só meu; como se dele não tivesses medo algum. Assim como nunca temi tuas cicatrizes autoprovocadas, os cortes e as queimadas dos cigarros – que tu acendias com o único propósito de render-te ao destino dito incontrolável. Tu te regeneravas meio que sem querer; olhavas outra vez o caminho adiante como se algum dia viesse a te pertencer... Dormindo instantaneamente na cama ao meu lado assim que caía nela, tão bêbado como um mosquitinho de Rimbaud; e no outro dia já obcecado e maravilhado até o êxtase com cada feiúra e bizarrice que eu possuía em minha velha casa, tua conquista e reinado – não! Quero-te com minha luz, as novas luzes de cada novidade habitável. O que puder te acender, reconciliar com o sol do qual foges com um ímpeto de singular puerícia...

Tu me escapas, nas praças e parques não paras para conversas que não sejam de curta duração, só para eu te perder no fim da tarde e no início dos açoites que ardem meu desejo mais incomunicável, em instantes de despedida – e novamente não nos despedimos: te perco ao longo da faixa da aurora sidérea.

E já em casa (cada casa em que me refugio) me agarro sofregamente a cada fetiche-avatar em que prendi tua projeção, imaginando que abraço teu corpo absurdamente perfeito – perfeito em cada marca e cada espinha e bactérias inocentadas em teu estômago de éter. Beijo o ar, os armários, as paredes, os cucos calados dos relógios invisíveis – pois tu te manifestas em tudo que vejo, entrevejo e imagino entrever, sorrindo e rindo tua risadinha e as caretas de desenho animado que mesmo toda aquela máscara de rock gótico não consegue conter, me arrancando da paz sem desejo, sem corpo, sem precisão... Jamais descansando da roda ardente, da espiral da serpente... e não entendes nada disso; meus dramas e comédias e catarses te escapam eternamente – não sei ainda dizer se é por desprezo ou simples inocência. Jamais conseguiria te odiar... Posso apenas, por agora, dormir na companhia de mais um belo substituto. Ou um bichinho de pelúcia. Ou a lembrança daquele certo patinho de plástico amarelo no sonho da minha primeira infância (eu o chamava “Coração”).


Coração de Goody, assim o chamavam,
Aquilo que se foi sem nunca ter ido.
Um amigo da luz, ao sol despertava,
Sem saber que o sol por ele era atraído.

Por entre os canteiros colore-se o moço
De acenos das telúricas energias;
Um poema viril lhe desenvolve o torso
E corpos se fazem música e harmonia.


(Um irrequieto vendaval de olhos de oliva passa por tua vida e deixa estilhaços de avatares humanoides facilmente saboreáveis, mas de todo desiguais ao Adorado Adorável – e o quê te resta? A “sagrada paciência” e um sabor anacrônico de martírio.)



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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Planeta de Exílio


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O silvo do transe pudoroso ainda paira sobre as construções e as plantações. A criança baixa sua testa em consideração à sua última e esfarrapada esperança de sorrir. Consolos melindrosos ainda a sorrir nos cruzamentos dos caminhos sinuosos. Bem alto, no nível das nuvens, abrem-se portas invisíveis para que caiam os alívios derretedores de argumentos. E caem.

“Maldito ciclone” – rouquejamos. Sua cor única é o emblema da circunscrição única. Nossos braços estão impedidos de abraçar. As canções já emudecidas; campos inacessíveis pelas cercas ácidas. Pálidas são as vestes sacerdotais dos geniosos ministros infernais. Mas ainda pagamos pelas preces, mesmo sem o saber – ainda ajoelhamos na armadilha armamental. Sempre, sempre na espera de um amanhecer nostálgico, subterrâneo, que nos quebre os elos fatais.

Nem as águas que desabam chegam a nos curar. Nossas feridas, já tragadas pela umidade, decoram festivas as estradas da iniqüidade.

Nossos olhares – ah! Quem me dera não mais lembrar dos termos da promessa imposta! Este vínculo politicamentosamente inamovível que nos cinge de dor... e a dor... impossível de ser descrita porque é GRITO e lamento inútil de se tentar traduzir...

Cante ao espaço pútrido, exclame pela salvação, meu único amigo – pode dar certo desta vez. Tem que ser certo, certeza de vida vivida; sim, agora!

Agora os resíduos tecnológicos cobrem a exclamação.

Vastos esteios de domínio recobertos pelo assombroso arsenal: nossa despedida. Nossas idas melancólicas, silentes, evanescidas... Para a distância mais erma e oposta ao conceito acolhedor... Longe, longes sentimos e sonhamos nossos sonhos sem paz, dilaceradas lágrimas!

Sim, vez ou outra alguma estrela cai do céu. Mas sabemos se tratar apenas de rochedos, ou coisas menores ainda – partículas insignificantes de esperança objetivada. Nada que mude o enredo básico. Sonhamos ainda com uma libertação criativa, realmente emocionante – não com fugas ilusórias! Não queremos mais máquinas artificiosas para enxugar nosso pranto – precisamos, isto sim, é que este seja derramado por uma causa digna!

Digno! Digno, brilhe como outrora!; conte-nos novamente aquelas histórias preciosas – precisas! – de revoluções previstas por profetas filosóficos, imponentes no retrato!... Revoadas mecan

Corte. Sempre há alguém caminhando sozinho debaixo da chuva. E, quando nos apercebemos disso, é quase sempre certo que somos nós. Ou seremos. (“Os próximos”.)

Sozinhos – evidentemente.



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Planeta Deserto


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Estranhas ações e reações eólicas. Solitários pedimos maiores informações aos solitários ainda mais desinformados. O céu pesa; sentimos o sarcasmo da carícia. Rigidez, mesmo entre tantas volições.

Cantando para abafar a derrota pronunciada pelos elementos... desaparecidos – nós! – após a tormenta definitiva, aquela que derramou sua benção de vento, água e pedras de gelo gigantescas sobre o até então feérico cenário. A desolação atual – você a conhece bem. Fugia dela e a encontrava de cócoras no refúgio. Nas ruas de terra. Nas rodas-gigantes. Engrenagens de carrossel – lembra daquele tempo? Pois é, está morto.

Mas ainda continuamos. Até quando? Até quando a derrota estampada nos rostos, matando por prazer, furtando por vocação? Lutas mal-calculadas, vigorosamente precipitadas sobre nós e eles. Mas agora eles gostam; já se acostumaram a morder e a arrancar pedaços: o saboroso espetáculo da dor.

De novo? Ah, não... não há quem suporte percorrer este trajeto desolado vezes e vezes seguidas. Nossas vidas estão perdidas. Caldeirões, caldeiradas substanciosas bem puderam nos revigorar nos velhos tempos das velhas campanhas promocionais bairristas e nacionalistas. Mas agora bairros e nações já estão explodidos; nem cinzas deixaram, e, de qualquer forma, é o cúmulo da auto-aflição guardar as cinzas do ente amado.

Pois bem: amamos demais sem nos dar conta da projeção mental estereotipada plasmante da realidade. E é por isso que agora estamos aqui, vagando sob o sol escaldante, sempre em busca de água, sempre chorando nossas últimas gotas de angústia estética. Pura derrota, clara e visível, inegável. Queremos voltar a cabeça, argumentar com o sol. Mas ele não pode falar, evidentemente. É rígida a realidade. Carcomida, sim, mas rígida de opressivas manias assassinas. Tudo isso, tudo aquilo se derramando sobre nós – ainda, ainda, ainda...

“Nós”, eu disse? Mas quem? Só há uma pessoa aqui, cantando sua bela insanidade para o nada absorvedor. Absorvendo o cenário tristemente; lendo mapas coloridos e cheios de símbolos, mas que nada dizem. Desorientação. Desnorteamento. Absoluta, total e interna solidão.

As lembranças como verdugos impassíveis. Mas, e o afago? A Força do universo?

É o Planeta Deserto. Futuro do presente, já presente. Então fujamos – viver ainda é a meta.

Isto é, fujo.

Eu, liricamente.



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sexta-feira, 19 de junho de 2009

Planeta Apego


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Pedras guardadas reclamam a distância e a separação – pedrarias montanhosas choram a rústica e bruta extração.

Toda dor que uma criança consegue conter em seus pequenos olhos... suplantada pela dor que não consegue conter... O derramamento incontido de soluços, silenciado nas sombras das celas domésticas... Cruzes, lápides e marcos de cemitérios e depósitos de cadáveres de todo um universo agora tremem com cada ligeiro pensamento de um retorno... à infâmia da dependência.

Bruta ou sublimada. Ou não.

Extensiva, transcendida ou não...

Somos o pilar e o pilão. O monolito e a lajota. Distância, separação corrosiva retratada nas entranhas, nas paredes intumescidas da alma. Calma violentada, saídas utópicas para o irremediável. A máxima dor teórica posta em prática e aplaudida. A seriedade do discurso mais hipnótico, condicionando-nos à dilaceração – não podemos negar que nos corrompemos. Permanecemos na mágoa e no pranto saboroso; vertemos irrisórias fontes de esperança requentada. E a reencarnação combatida por parapsicólogos espalhafatosos, histriônicos, ensandecidos de razão e vontade de ver o sangue jorrar.

“As pedras nunca mais serão jogadas”, dizem elas. As águas. Não geradas. Pulsão pusilânime rumo ao medo ancestral, hereditário, coletivo nos arquivos da alma. Culpados por isso? Jorrando e jorrados desde sempre e para sempre; catando vida pelas trilhas escurecidas/anoitecidas que conduzem à viela dos minérios.

Cemitérios. Carbonizamos desafetos desnudos. Crentes sem um paraíso: pura dor, puro horror, horror puro inexprimível em palavras amanhecidas e dormidas. Cadavérica forma incerta de realçadas feições trigonométricas..., ergométricas, tétricas – uugh!! – são elas; nós bem podemos reconhecê-las; são as vidas reclamadas, exigidas e já destituídas de som, cor, forma e qualquer expressão.

Não mais correrão as crianças. Lindos contos condicionantes às camas atávicas. Fausto em ornamentos repulsivos de previsibilidades repentinas. Dureza das decisões ensangüentadas dos desamantes.

Não, não podemos crer que somos nós, nem nossas imagens. Críamos em saltos evolutivos, em liberdades de expressão em tempos de opressão autóctone. Mas agora é a dor que vem mostrar seu rosto; pupilas vazadas – olhos arrancados – outras faces que nunca tiveram olhos – bom para elas. Bom nos últimos tempos, nos últimos dias e instantes dos aguardantes impacientes do armagedon vulcânico tantas vezes citado nas páginas que queimamos nas praças públicas de nossas ridículas e infantiloides vitórias mentais.

Os relicários de minutos produzem sonolências abstrativas. Nada é conforto real. Tudo é fuga descompassada, tudo foge! Porque guardando sonos compactados em valises quadridimensionais, bolsas sinistras, sacolas e sacos musguentos – meu Deus! –, corremos em nossa fuga, em nossa dor subitamente acometida, explodindo a lembrança do distanciamento jamais esquecido. Tudo em nós, tudo gravado em nosso peito e abdômen, sim, inexoravelmente fazendo-se chamariz do remoído remorso inexplicável, inextrincável – ável. Luminosa expectativa de uma queda interminável.

Nada esquecido, nada banido. As almas e os órgãos internos gemem porque não têm mais força para berrar de desespero. Os externos gemebundam ao retê-lo sem o saber. Abandonamos o Saber.

São as dores do querer. Os amores e o sofrer – sofremos por rimas! E continuamos.

Ah, livrem-me da tarefa de descrever... a fração do colapso... a ação do tempo sobre a pele... luzindo brontossáuricas tormentas em lugar de plátanos acetinados, lisos alisamentos consoladores... Por que voltamos aos terrores? Por que vagamos em nossas estradas e estertores? Paraísos impossíveis... Por que nos enganaram tanto desde a infância?

As pedras! Choram. Desde sempre em nós. Voltem, ah! Voltem à sua justaposição inercial categórica; voltem sem alarde e sem medida de tempo-regresso, valentes! Longe, longe em nós, é lá que guardamos os sonhos e os medos, os mais adoráveis segredos que nos sustentam todos os dias... dias de fantasmais utopias. Valentes, valentes nos críamos. Nunca mais...

Nunca mais. Nunca poderemos reter em nós o minério e tampouco a concretização do mistério. Nossos arquivos – pranteiam e pranteiam como nossas almas informes.

Nosso riso: caudaloso em esfera medianímica. Perdemos o ciso. A dor deixa seu rastro, e nós seguimos o prazer sobrevivente.

Sigam-me, sigam-me sem receio algum. Confiem: nada prometo – o mundo já deu sua palavra. Será nossa, portanto, a beleza herdada... se apenas pudermos salvar seu sabor vivo e o veículo de sua livre manifestação!

Salve, salve, salve...

(Morri.)
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O encanto perdido (resumo/adaptação)

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(Resumo / adaptação para roteiro)



Um homem idoso, de semblante solitário, caminha devagar pela ruas de uma pequena cidade. Evita ter de olhar os transeuntes – só o faz brevemente com relação a um menino que passa segurando um algodão-doce.

PENSAMENTO EM OFF: “A ingenuidade envelhece. Meu pai já dizia. Por que duvidar? Eu me lembro bem. Não obtive benefício algum. Há sempre alguém nos enganando enquanto nos deixamos absorver pela distração. Regras de sobrevivência em um mundo capitalista; te fazem duro e garantem o pão nosso.”

Anda mais devagar ao passar diante do café-bar, olha lá para dentro por um pouco de tempo. Vê homens conversando junto ao balcão. Atrás deste, uma mulher simples porém gentil serve-lhes café.

O homem vasculha os bolsos, mas logo se desanima ao constatar não haver ali dinheiro algum. Olha para os lados e resolve atravessar a rua. Ruma para a praça localizada logo em frente. Senta-se no banco, e fica lá pensando.

PENSAMENTO EM OFF: “A mesma praça. O mesmo banco. Em todos os lugares eles são brancos, em todos os pontos do mundo”

É focalizado um edifício.

PENSAMENTO EM OFF: “O edifício continua no mesmo lugar... Nenhum avião caiu sobre ele antes do noticiário do meio-dia.

A rua e os passantes.

PENSAMENTO EM OFF: “O mundo não sabe que você existe. Deve ter lá suas razões... (...)

Um sol intenso entre o arvoredo da praça.

PENSAMENTO EM OFF: “Hoje seria um dia ideal para se nascer. Eu gostaria de nascer hoje. Contanto que algo diferente aconteça; um outro mundo, um outro tempo... Algo novo e que me surpreenda, que me conceda a chance de ser alguém...”

O PÁSSARO (voz masculina): – Você leu o jornal hoje?
O homem volta-se na direção da voz que o interpela e vê o passarinho empoleirado no encosto do banco, à esquerda.

O HOMEM: – Não, não cheguei a abrir.

O PÁSSARO: – E por quê?

O HOMEM: – Porque eu o abro todos os dias e já sei exatamente o que vou ver. Minha vida não mudará em nada por causa disso... e, de qualquer forma, se tiver algo realmente surpreendente, vai passar na TV.

O PÁSSARO: – É; de fato, é bem difícil que a TV mostre algo muito diferente do jornal. Mas hoje pode ter acontecido algo realmente importante, a nível mundial.

O HOMEM: – Algo importante, hmm... E o que poderia ser?

O PÁSSARO: – Nada além do que já está diante de você, a cada minuto.

O homem silencia e admira a rua à sua frente.

O PÁSSARO: – Foi só uma opinião, entenda como quiser...

O HOMEM: – Eu estou aqui precisamente para encontrar algo que os jornais não mostrem. E o que eles mostram é o mesmo que eu vejo todos os dias, nada mais; nada que me faça... (pausa)

O PÁSSARO: – O que você está vendo agora?

O PÁSSARO: – O que você está vendo agora?

O HOMEM: – Uma vida sem valor... Vidas sem valor... A única lição que pude tirar desta vida é que nada tem valor algum. Tudo é tão vão, tudo tão frágil e falso, como cenários de papelão... As coisas mais contraditórias, o bem e o mal, o prazer e a dor, tudo isso demonstra ter a mesma magnitude. Há quem veja beleza nesta identificação, mas eu nem mesmo sei identificar a beleza. Eu gostaria de estar enganado quanto a isso, mas... não há o que eu possa fazer.

O PÁSSARO: – O que você gostaria de fazer agora?

O HOMEM: – Em termos de possível?

O PÁSSARO: – Ahn... sim.

O homem respira profundamente e esboça um sorriso.

O HOMEM: – Agora mesmo eu gostaria muito de poder tomar um café... logo ali (aponta o prédio descascado).

O PÁSSARO: – E por que você não vai, então?

O homem expressa desânimo.

O HOMEM: – Me falta dinheiro para isso.

O PÁSSARO: – Bem... no mundo em que eu vivo, o café sempre é de graça.

O homem paralisa, olhos e boca abertos.

PENSAMENTO DO HOMEM EM OFF: “Esquizofrenia. Eu sabia que iria acontecer um dia.”

O PÁSSARO: – Você ainda quer café?

Nada de resposta. O homem continua estático.

O PÁSSARO: – Sim, você quer café.

Enquanto ouvimos a voz do pássaro em off (próximo parágrafo), segue-se uma cena: o homem entrando no “café-in”, bem confiante e alegre; em seguida cumprimenta algumas pessoas nas mesas e conversa algo com elas, brevemente; dirige-se ao balcão e lá é atendido por uma simpática mulher de meia-idade (olham-se fixamente nos olhos por um rápido instante). Então vemos esta mesma mulher entrando em seu quarto, sozinha, e logo se admira no espelho do roupeiro. Expressão triste.

VOZ DO PÁSSARO EM OFF: “Mas o café está em você, e nada poderá tirá-lo de lá. Você e o café são um só. Há de fato um grande desejo, e este desejo é tudo. A este desejo deu você o nome de café. E não há outro. Você já provou o café inúmeras vezes e certamente voltará a provar. Você paira sobre um abismo entre o café já tomado e o a se tomar. Este abismo tem gosto e aroma. E tem grandes janelas panorâmicas, convidativas para os transeuntes. Tem som de agradáveis e breves conversas junto a um balcão, sobre o qual se inclina aquela mulher tão atenciosa, mas cheia de segredos, que costuma chorar de solidão na noite de seu pequeno apartamento suburbano, envolta pelo seu complexo psicológico de transferência derivado do amor electriano, à espera de um homem compreensivo e maduro que se lhe mostre como uma revigorante surpresa há muito esperada.”

O HOMEM (AGORA SORRINDO): – As idéias...

O PÁSSARO (ANTES DE VOAR): – Mas não se esqueça das moedinhas, OK?

O pássaro sai voando e o homem o acompanha com o olhar, meio confuso e muito pensativo. Seu rosto encerra a cena.



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O encanto perdido


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Conto ou roteiro, como quiserem.

Let’s go to the trip.

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O septuagenário caminha devagar pela rua de uma pequena cidade.

Sobretudo. Mãos nos bolsos. Vento nos cabelos. Envolvem-no(s) sons de (sub) cultura humana “funcionando”. Talvez uma canção de amor, seja lá o que signifique isso numa hora dessas...

A esquina do prédio de pintura descascada ainda está no mesmo lugar. O aroma do café que sai dali é familiar como qualquer pequeno gozo ou cínica tortura do cotidiano (a mão sai do bolso do capote e enfia-se no da calça, remexe ali por uns instantes). Em algum lugar moedinhas tilintam (em algum lugar).

Edifício amarelo diante da praça-de-jogar-buraco intacto e caricaturalmente imponente. Ele continua ali. Nenhum avião caiu sobre ele antes do noticiário do meio-dia. Ninguém dormia para que isto acontecesse... e o que acontece, de qualquer maneira?

A mesma praça.

“Para quê se alarmar? É só a mesma praça de sempre”.

O mesmo sol de sempre.

“Palavras do Pregador, Eclesiastes. Um velho, antigo sentimento.”

O banco da praça é branco, como dois mais dois são quatro. São brancos em todas as partes do mundo. Em todas as partes do mundo os aposentados os freqüentam - não adianta querer ser holístico num momento destes. É inútil, inútil em todos os mundos.

Feche os olhos. Tente encontrar a si mesmo na escuridão.

“Não, não é escuro o suficiente...”

Visualize a si mesmo no sorriso da criança que passeia segurando o algodão doce. Olhe bem. Ela se demora a comê-lo, justamente para poder admirar aquela cor forte... as variações do rosa justaposto ao sol...

“A ingenuidade envelhece. Meu pai já dizia. Por que duvidar? Eu me lembro bem. Não obtive benefício algum. Há sempre alguém nos enganando enquanto nos deixamos absorver pela distração. Regras de sobrevivência em um mundo capitalista; te fazem duro e garantem o pão nosso.”

Na parte menos iluminada não há um rosa mais intenso, mas um rosa misturado ao preto. Pintado suavemente, bem como havia ensinado a professora na aula de desenho da primeira série.

“Realidade. Concentre-se na realidade. Ao menos pense em algo que faça FUGIR o passado - algo REAL.”

O aroma do café alcança o banco branco. Doces torturas, doces e cínicas. Pequenas como uma gota de cicuta. Ou uma gota de ausência. O que dá no mesmo - como sempre.

“O mundo não sabe que você existe. O que posso oferecer ao mundo? Ele deve ter suas razões - não é uma força produtiva que agora jaz sobre um banco de praça. Recebo invariavelmente o que dou: nada. E as árvores da praça zombam de mim, porque resistem, sob o sol e sob a chuva. Mas...”

Os passarinhos cantam.

“...os pássaros piam e... hoje seria um dia ideal para se nascer. Eu gostaria de nascer hoje. Contanto que algo diferente aconteça; um outro mundo, um outro tempo... Algo novo e que me surpreenda, que me conceda a chance de ser alguém...”

– Você leu o jornal hoje?

O homem voltou-se na direção da voz suave que o interpelou. Um passarinho, empoleirado no encosto do banco, à esquerda, olhava para ele.

– Não, não cheguei a abrir.

– E por quê?

– Porque eu o abro todos os dias e já sei exatamente o que vou ver. Minha vida não mudará em nada por causa disso... e, de qualquer forma, se tiver algo realmente surpreendente, vai passar na TV.

O passarinho dá uma meia risada.

– Ah, eu sei. É; realmente, é bem difícil que a TV mostre algo muito diferente do jornal. Mas eu lhe perguntei porque aconteceu uma coisa muito importante hoje de manhã, e uma coisa importante a nível mundial.

– Hmmm, começou a ficar interessante... E que coisa é essa que pode mudar o mundo?

– Fidel Castro pousou às dez da manhã no aeroporto de Havana.

– Bem, seria extraordinário se desembarcasse no Vaticano... O que tem isso de surpreendente?

– Ele voou. E pousou. E passa bem. O avião não caiu, não enfrentou turbulências no caminho de volta do Brasil. Você sabia que, diariamente, milhares de aviões decolam no mundo todo ao redor do mundo e, de cada 100 destes, 100 pousam sem maiores problemas, em total segurança?

– Para você deve ser fácil falar.

– Diante disso, prefiro imaginar a existência de um grande Espírito Celeste permitindo a alguns voarem sem possuir asas. É, realmente, algo espantoso e digno de nota.

– Eu não precisaria ler o jornal para saber que alguns aviões não caem. É por isso que estou aqui: para encontrar algo que jornais não mostrem.

– Concordo quanto ao jornal, mas os fatos estão acima dos meios.

– Fatos... É, devo admitir que você tem razão. Mas não possui a chave da ciência dos fatos. Ninguém a possui; nem eu, nem você.

– Parece haver algo que lhe preocupa nos fatos.

– Bem simples: eles nunca tiveram o costume de obedecer ao meu comando.

– Talvez você necessite algum pré-requisito básico.

– Que seria... (aguarda complemento)

– Não, você não entenderia em palavras. Mesmo porque a resposta já está diante de você, esperando apenas por ser decifrada.

O homem aguça o pensamento, não sabendo ao certo se o fixa nos fatos, ou em algum deles, ou na relação entre eles, ou entre alguns deles. Há uma pausa mais ou menos demorada (se o homem demonstrasse maior interesse na conversa, ou uma abertura para o diálogo, seu amigo voador falaria muito mais). E o cenário não muda significativamente, bem como esperado.

– A única lição que pude tirar desta vida é que nada tem valor algum. Tudo é tão vão, tudo tão frágil e falso, como cenários de papelão... As coisas mais contraditórias, o bem e o mal, o prazer e a dor, tudo isso demonstra ter a mesma magnitude. Há quem veja beleza nesta identificação, mas eu nem mesmo sei identificar a beleza. Eu gostaria de estar enganado quanto a isso, mas... não há o que eu possa fazer.

– O que você gostaria de fazer agora?

– Em termos de possível?

– Ahn... sim.

O homem respira profundamente e esboça um sorriso.

– Agora mesmo eu gostaria muito de poder tomar um café... logo ali (aponta o prédio descascado).

– E por que você não vai, então?

O homem expira, em desânimo.

– Me falta dinheiro para isso.

– Bem... no mundo em que eu vivo, o café sempre é de graça.

O homem paralisa, boca e olhos abertos.

"Esquizofrenia. Eu sabia que iria acontecer um dia. Já me espreitava desde a adolescência. O santo de Assis e o Dr. Doolittle... Não, ninguém me acreditaria. Eles têm mesmo razão. Não existem santos no mundo dos bancos brancos, das praças-de-jogar-buraco e dos prédios mal-rebocados ou mal-pintados.”

– Você ainda quer café?

Nada de resposta. O homem continua estático.

– Sim, você quer café.

O desejo é tudo.

Sim, você certamente sabe o que é café, o que é um ótimo sinal. Você sabe porque já o provou tantas vezes até reter em si a própria Idéia de café. É por isso que o café está em você, e nada poderá tirá-lo de lá. Você e o café são um só.

“A esquizofrenia tem recursos inesperados, de fato surpreendentes.”

Seu desejo é tudo. O único café existente agora é o seu desejo. A este deu você o nome de café. E não há outro. Você está sentindo o café em cada partícula de sua alma. Está totalmente dominado. O café tomou conta de tudo que você é e está. E sempre será assim, enquanto você quiser que seja.

Você já provou o café inúmeras vezes e certamente voltará a provar. A certeza e o desejo são desta forma um só. Você paira sobre um abismo entre o café já tomado e o a se tomar. Este abismo tem gosto e aroma. Tem também a forma de um prédio meio descascado, de grandes janelas panorâmicas, convidativas para transeuntes. Tem som de agradáveis e breves conversas junto a um balcão, sobre o qual se inclina aquela mulher atenciosa, mas cheia de segredos, que costuma chorar de solidão na noite de seu pequeno apartamento suburbano, envolta pelo seu complexo psicológico de transferência derivado do amor electriano, à espera de um homem compreensivo e maduro que se lhe mostre como uma revigorante surpresa há muito esperada.

– Amigo páss...

Sim, sou sua esquizofrenia, se assim preferir me chamar. Mas não importa. Sei que os fins justificam os meios, assim como os fatos são sempre por ambos soterrados. Deveria você dar tamanho valor ao que jaz sob a terra?

A certeza e o desejo são tudo, já o disse. Assim sendo, para justificar este tudo denominado café, dirija-se ao seu destino fenomênico: ingira o
Coffea arabica e cative o individuo de sexo oposto do Homo sapiens sapiens.

Com as moedinhas, OK?


(Numa terça-feira, às 3 horas e 15 minutos da tarde, sobre um banco de praça, um garoto acaba de nascer.)



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Fantasia de andarilho


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Eu havia tentado mais uma vez; juro que tentei ser ou parecer normal, ou, por vezes, convencionalmente excêntrico. Minha vida inteira pode ser resumida – até agora, bênção da idade – num contínuo parecer. O que aconteceria se eu esquecesse tudo isso e mandasse o mundo se danar? Sei lá, mas seria algo bem próximo da morte, esse vazio supremo, esse ser-ou-não-ser-eis-a-questão advindo da ausência de mim mesmo – algo que quase todas as criaturas sentem, vez por outra, mas que nem por isso chegara a se tornar matéria para canções fáceis de se cantar junto.

Agora eu descia a ladeira fingindo passos de bêbado, embora, como fosse do meu feitio, não houvesse bebido demais. Tanto faz, uma vez que minha cabeça latejava de tanta vontade (contida) de chorar; aquele ardimento em algum lugar invisível entre os meus olhos. Eu havia prometido a mim mesmo que dessa vez iria funcionar e caso não funcionasse, havia me predisposto a suportar tudo com a paciência de um mártir. Engraçado... Sempre fui impaciente e, no fim das contas, martírio e suicídio são um pouquinho distintos. Pau que nasce torto, pois é. E eu pensava que dessa vez funcionaria. Ora, se eu mesmo não posso mudar, assim como num milagre, quanto mais não o poderiam as noites! Ficar a noite inteira zanzando de uma ponta a outra do salão fumacento, parado e parecendo um idiota, dançando e sendo chamado de vileiro, vagabundo e daí pra baixo. Tudo para ser aceito, para ser bem-visto. Não, não é o meu lugar, não é a minha diversão, não a minha opção. Mas TU te encontravas ali, e não posso evitar optar por ti, mesmo levando em conta todo o esforço vão, luta, humilhação e vexame que vou deixando para trás quando te persigo, embora atado a ti, your damned white sperm whale, atado por laços imaginários que nem um John Huston nem ninguém conseguiria materializar em película, porque nenhum filme conseguiria transmitir a sensação exata... Não, não quero meu ingresso de volta; quero me afundar em “ti”, ir mais longe ainda. Tu estás na minha dor, mesmo quando te esquivas na multidão. Fui até o fim do mundo atrás dessa isca, tentação, chamariz, imã, norte magnético desorientador que está em ti. Quanto mais te procuro, sinto que estou mais longe de ti; ainda assim teu fantasma sorridente está em algum lugar desta rua quase deserta e desertificadora de almas errantes que se fazem boêmias na busca pelo que foge. Busco e me desintegro dia após dia, desenhando retratos teus cada vez mais imprecisos, vendo filmes previsíveis e livros pretensamente vanguardistas e cheios de estilo, só porque os buraquinhos de cupins ou traças nas páginas me despertam compaixão. Imagina se fosse EU quem tivesse escrito... (não lerias)

Mas posso ainda chorar, posso ainda sentir algo e assim me julgar por um instante fora do dilema shakespeareano. Esta implosão avalanche corrosiva, dilacerante de meus sentimentos mal-acostumados de garoto mimado é sinal de que tu existes, e se não existisses seria tudo mais intenso, com a diferença de haver maior pendor ao dilema. O que mais posso fazer?

Subindo e descendo tantas ladeiras vou deixando um rastro de ti no éter infecto da madrugada. Eu juro que tentei. Outra vez. Tentei mostrar que eu podia falar como os outros, rir como os outros e acabei aqui num cafundó, chorando como eu mesmo choro e filosofando para não morrer. Subirei e descerei, descerei quantas vezes me permitirem minhas “forças” na tua Força. Não consegui ser igual aos outros, não consegui ser vanguardistamente diferente. Tudo sempre acaba em lágrimas; já vi este filme tantas e tantas vezes ainda o verei e mesmo assim achei que dessa vez iria dar certo, porque a luz da cultura que absorvi me enganara; luz suja, luz de hospital, luz de peixe-víbora abissal; aquela montanha de cultura abridora de pensamentos e incitadora de revolta estudantil socialista não passava de um emaranhado espinhento de palavras, flor do Lácio, pretensões pré-históricas. Filmes velhos; ah, eu os cultuava. Aquela mística, o que parecia científico não passava de linguagem pretensamente científica, sem metodologia e eu também fui fisgado, como milhões de candidatos a espertos e a visionários. Aquele sistema, aquela religião, aquela fuga, tudo desmorona diante da evidência de que as noites continuarão escarnecedoras e nelas eu jamais serei aceito, bem-visto e nem mesmo suportado. Já passei da idade reservada a se questionar sobre “identidade”, mas não tenho idade, porque a tristeza parece tão infinita e tu agora tão grandemente inacessível e perene em meu pranto perene debaixo dos sorrisos e afazeres cotidianos, diálogos desviados e desfocados...

Ludibriados, ludibriadores, fingidos. Ah, deixo-me então seguir a rua, a lua, tua qualquer coisa, só pra rimar. Freud e Jung estavam enganados. Dormirei e, como sempre, nunca te alcançarei no mundo dos sonhos, nunca concretizando, jamais saciando a fome do meu coração.

Se fingisses tu também, seria outro filme previsível... e é por isso, talvez, que insisto. Atrás da muralha há alguém, um alguém verdadeiro. Atrás de minha muralha pétrea, viril, esconde-se uma cidade pacata e até frágil, mas minha. Se eu vier a morrer, não te culparei. Se eu jamais te alcançar, não poderei responder. Eu quero o TU e quero o EU, mesmo se (ou por isso mesmo) a verdade – como de costume – não parecer muito atraente e a magia se acabar. Algo, porém, deve ser feito. Por favor, te peço, te imploro, até subordinado: não me deixes voltar sozinho novamente... Embora eu saiba que nada evitará que novamente eu me veja percorrendo essa rua longa e misteriosa, soturna, noturna, sinuosa... Pois sei que vou continuar tentando, até me acabar, até tudo se consumar, até romper-se o cordão de prata e nosso amor entrar para a história.


(Lead me to your door!)



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Intervenção


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Eles desceram do céu no início da noite. O vento angustiante que assolara as pastagens durante todo o dia bem parecia uma prenúncio da desgraça. As crianças pararam de brincar, mulheres recolhiam suas roupas, cães encolhiam suas orelhas e procuravam um lugar para se esconder. Estranhos estrondos ecoavam entre as montanhas; sobre as nuvens do entardecer tremeluziam cintilâncias matizadas de tons quentes; os cânticos dos pássaros, estes mais pareciam lamentações.

Todavia a noite iniciara iluminada - irregularmente. Estranhas bolas de plasma luminoso sulcavam o firmamento, desciam num vôo rasante e mostravam suas faces aos pobres amedrontados.

Do alto do penhasco que sobressaía da serra à qual o vilarejo agora pedia panteística proteção, os nômades limitavam-se a olhar, não compreendendo aquele espetáculo dantesco. Quando acordaram para a necessidade de fugir, intempestivamente correram em direção aos bosques. Não tiveram chance alguma: eram meros mortais.

Junto à entrada da cidade, estavam elas lá, as tropas assassinas que agora se faziam revelar. Corcéis cibernéticos, a artificial melena fantasmagoricamente branca a contrastar com a negra paisagem de fundo; assentados sobre estes, os impositores, a princípio imóveis em suas armaduras, ao primeiro grito de comando saltaram sobre a comunidade indefesa.

Ao golpe terrível das espadas luminosas, corpos frágeis ou fortes jaziam em seu próprio sangue.

Entre a multidão de desorientados, destacava-se uma jovem mulher, que, carregando seu pequeno filho nos braços, agilmente esquivava-se dos relâmpagos e das explosões, tentando encontrar abrigo entre os escombros. Vendo a inviabilidade de continuar assim procedendo, deteve-se junto à residência ainda intacta de sua irmã. Encontrou-a na varanda, em frenesi.

– Toma meu bebê, guarda-o contigo em tua morada, é possível que eles não mais venham aqui para assolar-te.

– Não te recusarei o pedido, mas, como podes estar certa de haver aqui segurança para teu filho?

– Ora, que interesse teriam os impositores em demorar-se para saquear pobres camponesas? Creio que ainda esta noite... (de súbito, uma explosão estremece a terra ao redor) Oh! Não podemos mais continuar aqui! Preciso encontrar um lugar para meu filho!

Entre as árvores entreviam-se ágeis centelhas: os cavaleiros e suas espadas mortíferas se aproximavam. A jovem mãe, tomando o bebê dos braços da irmã, correu com ele rumo ao centro desolado onde sua casa se situava. Sentia como se corresse por toda a eternidade.

Qual não foi o seu horror, quando, ao chegar junto à entrada da praça principal, deparou-se com a figura do próprio líder da Legião Impositora, ali postado em todo o seu esplendor mefistofélico. De seu capacete, alongado e rubro, despontava um ornamento brilhante, semelhante a uma formação de pequenas pedras; sua armadura reluzia como ouro. Vendo sua nova vítima, descobriu o rosto.

Numa atitude aparentemente insensata, a mulher correu para ele e, sem jamais largar o filho, ajoelhou-se exasperada.

– Vos suplico, em nome de vossa grandeza, que poupeis esta criança e sua pobre mãe!...

– Admitis a superioridade da Doutrina Intervencionista e a origem divina da Lei Pentagonal?

– Admito, creio, professo o que quiserdes, mas poupai-nos!

Num só golpe de espada, a mulher cai. Abaixo dela, a terra escurece.

– Fraca de espírito!

Desce do cavalo e ergue a criança. Levando-a consigo, monta. Um esgar se desenha em seu rosto de pedra.

– Não chores, pequenino – a voz cavernosa mesmeriza a criatura, que se cala –, não chores. Ainda tens muito a aprender...



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A máquina

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O Monitor entrou, encarou a todos com olhar frio e advertiu:

– Dentro de dez minutos.

Na sala, o silêncio fez-se absoluto; todos os internos apresentando diferentes expressões de apreensão, um temor mudo de quem já adquiriu a noção da inevitabilidade de um destino violento e inexorável. Alguns, na maior discrição que seu instinto de sobrevivência lhes permitia, chegavam mesmo a chorar. 8909, por sua vez, mantinha-se na expectativa costumeira que precedia cada vistoria-íntima-surpresa, o que se tornara uma ação muito comum naquela instituição. Ele, ao contrário da maioria dos colegas, tinha dificuldade de guardar na memória todos os cronogramas de atividades, fossem estas propostas ou impostas. Então, mais uma vez, optara pela submissão (como se houvesse alguma outra opção...). Ficou ajeitando seu uniforme, evitando olhar para as câmeras no alto da sala, na intenção de não demonstrar um medo suspeito.

Os grupos selecionados, atendendo ao chamado sintético dos alto-falantes, levantavam-se e seguiam em fila marcial rumo ao local indicado. Ou seja, a misteriosa sala 28, no último andar. Ninguém sabia dizer a qual setor operacional correspondiam tais dependências. Temiam até o mero comentário. 8909 nem sequer perguntara pelo propósito da corrente atividade, pois temia revelar a própria alienação. Estava completamente confuso; apenas ouvira alguém comentar a respeito de uma certa “tecnologia” que seria incluída entre os métodos pedagógicos, caso uma certa “experiência” atingisse resultados favoráveis a sua aplicação.

Pois bem, chegara a sua vez. Junto com ela, a angústia da incerteza que envolvia a todos. O grupo de cinco rapazes, monitorado pelos vigias eletrônicos, embrenhou-se no organismo gigantesco daquele prédio. Descobriu-se, por fim, que a referida sala 28 era, na verdade, todo um setor. Já no interior dele, foram distribuídas senhas para a apresentação em determinadas salas que a cada um deles estavam reservadas. Logo se verificou que o próprio ato de procurar pelas salas já era em si, uma espécie de teste. Sozinho, perdido entre longos corredores, escadas, guindastes, elevadores e câmeras, 8909 ansiava pela rápida concretização da “experiência”. Contudo, assim que pôde encontrar o caminho, fora novamente tomado pela apreensão, desta vez potencializada. Observou o aspecto de um interno que, já tendo participado da misteriosa atividade supostamente pedagógica, transitava por ali. Estava notoriamente exausto, em deploráveis condições físicas e psicológicas. Parecia estar gemendo ou soluçando...

y3y7y5/xl-88. Porta de ferro, paredes à prova de som... Um botão azul. Acionado, revelou-se uma campainha.

Sem muitas cerimônias, fora conduzido ao interior, após mostrar o talão com a senha. Homens trajados de branco o receberam e solicitaram que se deitasse numa espécie de divã elétrico que se destacava no centro do aposento, ligado a um aparelho imenso e morfologicamente indescritível. Nada de perguntas, nada de respostas. Apenas ordens claras e implacáveis. Tirou toda a roupa. As mãos e os pés foram atados ao divã, seu corpo ficou entrelaçado em fios e acessórios os mais inimagináveis. Encaixaram-lhe um hediondo capacete.

Silêncio total. O que estariam esperando?

De repente, a dor. Física, mental, interna, externa, absoluta. Física, mental, interna, externa, absoluta, incessante, sobretudo constante. A noção da constância era sem dúvida o pior aspecto. Mais. Mais. Mais. Mais. Ainda.

“Sua vida é devoção, rendição, submissão, aquiescência. Você agora faz parte do organismo universal que enaltece seu sangue, sua raça e sua pátria. Descanse sobre a maré de energia que consome toda consciência própria, lascívia e indolência que lhe corromperam. Reprograme sua viril juventude, transforme-a na força altiva que coroará sua descendência. Esteja apto a ser parte...


(um grito lancinante)


...da MÁQUINA.”



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Identidade

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Aquela noite não parecia ser real - normal, tampouco. Caio sentia-se como que em transe, contudo seus sentidos estavam acuradíssimos: tudo a sua volta transpirava significado. Aparentemente inexplicável; ele não se encontrava sob o efeito de nenhuma alteração em seu equilíbrio químico. Já havia há muito superado esse fantasma.

Nem mesmo o apartamento lhe parecia familiar. Uma iridescência azul, efeito do luar ou das luzes da cidade que se insinuavam através das persianas, banhava aquele conforto desorganizado que antes nunca lhe surpreendera. Seu próprio quarto, ao recebê-lo, aparentava estar metafisicamente preparado para o grande acontecimento.

Sentou-se na cama, sem intenção de despir-se tão cedo. Deitou-se de costas, mirou o teto, em seguida a parede à frente. Foi quando algo inusitado chamou-lhe a atenção.

O espelho do roupeiro. Havia algo lá. Algo o chamava, por sinal um chamado inaudível, mas irresistível. Caio levantou-se e, na tentativa de desviar o súbito temor, e ao mesmo tempo disfarçar a traidora curiosidade, passou a observar o seu reflexo. De início, acariciou o rosto devagar, tentou encontrar uma marca diferente. Então, de repente, surpreendeu-se de sua beleza. Sua própria beleza, exuberante e inocente ao mesmo tempo. Uma beleza eterna, imemorial, helênica, renascentista... Nunca havia se sentido tão compulsivamente atraído pela própria figura. Olhos doces, pueris; a cabeleira espessa, negra juba quase atingindo o alinhamento dos ombros, a boca insinuante, perfeita, sedutoramente hesitante...

Teve compulsão de beijar aquele reflexo. Pensou um pouco, porém, quase querendo resistir ao encanto. Num movimento brusco, virou-se de costas para o espelho e, com ímpeto insano, desvencilhou-se de toda a roupa que o cobria. Respirando em golfadas revigoradoras, fechou os olhos. Em seguida, voltou-se para a imagem refletida.

A visão era tão inconcebivelmente bela que Caio chegou a ficar com o espírito atordoado. Afagou lentamente seu torso, como se não se tratasse de seu próprio corpo. Permaneceu vários minutos na mais embriagante contemplação. Não, não queria mais saber de seu corpo, mas do corpo do reflexo. Este parecia adquirir vida própria. Uma vida verdadeira, algo que aquele jovem nunca tivera.

– Já me viste antes, Caio. Antes de tu o seres, eu o fui. A tua única vida encontra-se em mim. E tu acabas de encontrar o caminho para o Mundo das Essências.

– Mas... como posso encontrar um caminho que nem procurei?

– O tempo futuro não passa de uma freqüência a ser sintonizada, o presente lhe é quanticamente paralelo. Uma única virtude, por menor que seja, é um ducto transpessoal que funciona como um elo entre os estados da relação causa-efeito.

– Então... não seria coincidência?

– Talvez, mas não no sentido de acaso. Tu abriste uma pequena janela para a libertação. Alguém, do outro lado, compadeceu-se de tua pureza. E, assim, fez-se o intercâmbio. Mas... melhor seria se visses por ti mesmo.

Caio aproximou-se mais e olhou-o dentro dos olhos. Tocando-se mutuamente, os amigos se entregaram a um beijo longo e afetuoso. Ao final, ainda fitavam-se num misto de desejo e respeito. A imagem tinha um sorriso enigmático.

– Gostaria de mostrar-te algo. Estás preparado?

Caio não precisava responder. A imagem tomou-o pela mão e o puxou com delicadeza. Mas a travessia não fora assim tão simples. Todos os seus sentimentos viraram pelo avesso; uma fluidez envolveu seu corpo, fluidez sem tempo-espaço. Ele sentiu como se, por algum momento, sua consciência estivesse em todos os pontos do universo. Ouviu o som de mil correntes se rompendo ao mesmo tempo, muralhas a desabar, ondas a quebrar, sangue a correr. Então, reintegrando-se novamente, emergiu de um elemento líquido vivo e perfumado. Extasiado, voltou-se para a fonte de luz da qual era ele nada mais que pragmática extensão. Finalmente, encontrou-se desprovido de qualquer tipo de dúvida.

Pairando sobre a cidade que amanhecia, ondas de rádio e campos magnéticos anunciavam a volta da rotina. Uma energia renovadora envolvia as residências onde alguém despertava. Entretanto, muitos não tinham consciência do que ainda não viam, e continuavam a lamentar sobre os frutos de sua descrença.

Permaneceu atento àquele mundo de irrealidade. Ao início da tarde, observou um rapaz de semblante conhecido sair do prédio em que morava e descer a rua. Acompanhou-o do alto, compadeceu-se e refletiu:

“Há alguém lá embaixo que se esforça para ser igual a mim, mas no dia em que encontrar sua verdadeira identidade, seremos apenas um.”



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